Partida advertida

O ritual repete-se durante décadas, como se fosse a primeira vez. Parte de férias, avisado dos perigos do mundo…estrada, mar, copos, mulheres, homens e muito mais – «está bem, mamã», responde quase automaticamente, mas com o comprometimento de sempre. Adivinha o recado seguinte e complementa as profilaxias. Do outro lado da linha, o doce enrolar da palavra não tem urgência em despedidas. A aflição quase inata convoca maior prudência. Repete os avisos, estende-os aos amigos e acrescenta uma lista de contactos para casos extremos. Parte avisado, sem dúvida, também de coisas não pronunciadas, sentidas no cúmplice afago de quem sempre soube de tudo. Parte sobretudo com a certeza de não desperdiçar o que as circunstâncias se lhe propõem. Muito bom ano para todos. Até breve.

Pactos que perduram

Finalmente usou o vestido oferecido pelo marido há 15 anos. Escolheu o natal para sacramentar o acto. «A metáfora do (re)nascimento imortaliza os momentos», antecipa-se em explicações. Honra um pacto selado em recantos de paixão. Como quem se impõe ao destino, desafiaram a providência - «quando eu morrer, usa esse vestido para te lembrares de mim». Neste dia, desdobra-se em emoções festivas e o ressuscitar de memórias resguardadas. Reconstrói passados que se insinuam no momento e que se precipitam para um futuro que só a ela pertence. Uma lágrima despreocupada contorna-lhe a face e dissolve-se na boca sorridente. «Sou feliz», sussurra e compõe outros segredos. Nos seus olhos adivinham-se novos pactos...

Vivências

«Nós aqui, muito muito, é beber...e temos aquelas duas colunas para alegrar os nossos corações. Depois, dança-se!»

Ética, pecado e negócio

«Mais velho, peço que me escute um pouco só. Não lhe vou assaltar, não lhe pedir nada. Não posso mentir, Deus pode me castigar. O meu professor ensinou-me que a mentira prejudica o progresso do país. Estou a vender este perfume que roubei naquela loja. Está ali na montra, pode confirmar. Na loja custa 1 milhão e quinhetos mil meticais. Quanto é que me dá por ele? Boa coisa esta, para o Natal»

Natal desigual

O mundo é desigual. Não se pode esperar que seja diferente nesta época, apesar dos sonhos que se evocam. No dia em que o jornal notícias informa que o Tribunal Supremo anulou a sentença do Tribunal Judicial da Província de Nampula que condenou os Caminhos de Ferro de Moçambique-Norte a pagar mais de 50 biliões de meticais a 137 trabalhadores desvinculados no âmbito do programa de reestruturação económica da empresa, os trabalhadores de Maputo reuniram-se no lugar de sempre para fazer o ponto de situação. Entre réplicas do «a luta continua», a comissão de trabalhadores anunciou o acordo a que chegou com a administração dos CFM e o Ministério dos Transportes e Comunicação, que garante o pagamento de indemnizações aos trabalhadores admitidos a partir de 1989 e que entretanto foram despedidos. Este pagamento está, contudo, dependente de uma condição: cada trabalhador deve pagar 1 milhão de meticais ao assistente jurídico, 100 mil para a comissão e 25 mil para custear o aluguer de uma sala de aulas (que serviu de sede da comissão). Quanto ao polémico processo dos trabalhadores mais antigos, sujeitos a reforma antecipada, «os chefes não conseguiram responder às nossas questões», lamentaram. A sessão de esclarecimento foi participada. Braços no ar, comentários inflamados, dilemas existenciais, dúvidas insolúveis, discussões paralelas, palavras de ordem cruzadas… mas também frases (in)acabadas, expressões de desejos sem chão: «é pá, estamos mal pá, os meus filhos…não sei como vai ser…?». Não evito abandonar-me e viajar ao encontro dessa incerteza quase fatal. Multiplico-me em cada rosto. Intrometo-me em desventuras alheias. Quedo-me impotente. Não há milagres. Não é natal!

Firmeza na luta

Ontem o governo moçambicano comprometeu-se a pagar pouco mais de 48 milhões de dólares aos madgermanes. É um passo conquistado com suor e sangue. No início não lhes era reconhecido qualquer direito (houve até quem tentasse ridicularizar as suas reivindicações), actualmente marcam a agenda política. É um passo que não marca o fim da luta. É seguramente um importante registo de luta que se inscreve na história contemporânea de Moçambique.

Joshua

Criativo, exuberante no estilo e afável na fala, Joshua desafia muitos dos estereótipos que nos habitam. Top model de outras praças, sobrevive arrumando carros na baixa de Maputo. Exibe sempre penteados soberbos, auto-recriações engenhosas, existências que se confundem - «eu sou este cabelo aqui». Por razões identitárias, cada penteado é baptizado. A honra exige uma fotografia e um registo próprio. Imortaliza. No penteado molda o estado de alma. Neste dia usava o «águia», pronto para uma aventura caprichosa. O show com que brinda quem passa, serve de chamariz. É difícil não ser enfeitiçado pelo seu charme e há sempre quem esteja ávido de matar curiosidades a seu respeito. Com olhos de lince desassossegado controla os espaços, assegura a sua omnipresença. Espera por uma boa oportunidade para sair das ruas. Entre várias escapadelas repentinas para angariar mais um cliente, reconstrói sonhos apaixonados. Um contrato como modelo (houve quem tivesse prometido) seria um bom começo, entusiasma-se nos planos. Entretanto no dia-a-dia vai cumprindo outros sonhos: todas as manhãs reconstrói, em si próprio, metáforas de dor, de felicidade e de esperança. Não sei se deus terá a mesma prerrogativa…

O poder da palavra

Hoje, na assembleia geral do Codesria, senti um gosto especial ao ouvir traduzir very important por maningue importante.

Forum Social Moçambicano

Hoje, num encontro que contou com a participação de representantes de algumas organizações não governamentais de todas as províncias do país, foi aprovada a carta de princípios do Forum Social Moçambicano e eleito o respectivo comité organizador. À semelhança do que acontece noutros países e regiões, o Forum pretende constituir-se como um espaço democrático, de debate de ideias, troca de experiência e de articulação de lutas contra a globalização neoliberal. O desafio está lançado, mãos à obra.

Lugares que marcam