Monday, November 07, 2005

Tempos de desesperança



É o que resta da Maquinag, escombros. Foi a maior fábrica de carroçarias de Moçambique, a mais importante empresa de reparação de elevadores. Nos anos 80, lançou-se na produção de mobiliário, com sucesso. Foi atingida pela frenética onda de privatizações, encerrando centenas de postos de trabalho. Muitos dos trabalhadores se desencontraram no labiríntico processo de pagamento de indemnizações - «não vale a pena falar nisso», desistem perante maquinações indecifráveis. Lembro-me do percurso do Zé - «Fui colocado na Maquinag», anunciou altivo, não tanto por merecer a confiança do Estado, mas principalmente porque as estruturas tinham se demorado a discutir o seu futuro. O centralismo democrático exigia que fosse mesmo assim, que cada um hipotecasse o seu destino em nome do progresso, em nome da causa. O Zé cumpria todos os mandamentos partidários, era exemplar até nos sacrifícios. Interrompeu os estudos universitários e embarcou no sonho de construção do homem novo. Até na intimidade enterrava incalculáveis ismos e prometia aprumar outros tantos. Exibia, a qualquer pretexto, os êxitos da produção - «este ano ultrapassamos as metas...», perdia-se em monólogos sobre percentagens comparativas. Sem dúvida, a sua colocação foi merecida, ponderada e discutida com minúcia, livrando-se assim de sussurros semelhantes aos que caíam sobre alguns camaradas de luta, vítimas da astuta crítica popular que torna alheia a sua própria sentença: «dizem que» - «é familiar do chefe; estudou em russo; está habituado a trabalhar com tecnologia de ponta; é da segurança; é infiltrado; tem feitiço…», multiplicava-se histórias, teorias e, inevitavelmente, estratégias de defesa das conquistas. Guardo comigo um caderno de notas do Zé, com timbre do partido e estampado «unidade, trabalho e vigilância», essa trilogia que traduz os dramas de uma revolução. São apontamentos sobre a situação das unidades industriais nos primeiros anos de independência, são retratos apaixonados do país: entusiasmos, (des)organizações, (des)investimentos, sabotagens, reuniões, denúncias, emulação socialista, directivas, mas sobretudo esperança. Entretanto o mundo mudou e o Zé, ocupado em engenharias patrióticas, não deu conta. Os ismos que enterrara ressuscitaram e impõem-se com prepotência. A sua fábrica foi vendida, não sabe a quem, nem como. Ficou sem colocação, sem que nunca tivesse sido descolocado. Ainda participou em reuniões clandestinas para tentar reverter a situação - «já não há revoluções…», desistiu frustrado. Finalmente tentou seguir conselhos mais avisados - «esquece a política, luta por uma indemnização, agora é salva-se quem puder». Perdeu-se em animadas fórmulas de somar anos de trabalho, multiplicados por mais alguma coisa, mas foi debalde. Tudo se esfumou na sua vida. Dele nunca sai um lamento ou uma acusação contra os camaradas que abraçaram ismos inimigos, mas também nunca os menciona. Fecha-se em opacos silêncios, atraiçoados pelo escapar de um ou outro registo de experiências (revolucionárias) singulares. Durante vários anos contou com a solidariedade dos mais próximos para sobreviver, enquanto se entregava ao velho sonho de tirar um curso superior (talvez facilitasse uma recolocação). Ainda não conseguiu, mas persegue-o, reinventando projectos «verdadeiramente nacionais». Mas vida não permite tanto devaneio…procura salvar-se como pode.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Pois é... como a Maquinag há inúmeros outros exemplos de desesperança, como o caso da Famol a única linha de montagem de camiões do país e fabricante de caixas de carga na Machava, comprada pelo Sr. Leif Lindquist da Scanmo e fechada há anos, a Incar fábrica de carroçarias de autocarros e reparações, relembro que a Oliveira Transporte e Turismo só fazia as reparações e reconstruções das suas viaturas queimadas pela Renamo durante a guerra, bem como os seus autocarros novos eram fabricados nesta empresa e nas Indústrias Costa, actual Salvador Caetano e também em vias de fechar, lançando no desemprego só estas 3 fábricas mais de 400 pessoas. Outros exemplos da metalomecânica é só procurar como é o caso da Cometal Mometal que chegou a ter mais de 1.000 trabalhadores e agora reduzida a umas meras dezenas...Por todo o lado, mas principalmente em Maputo e na Beira, a indústria de base, metalúrgica e metalomecânica praticamente desapareceu, com honrosas excepções de novos empresários moçambicanos que conseguiram reconverter as suas empresas com sucesso admirável como o caso da Agro-Alfa, SARL (não confundir com Agro-Alfa Fundição...). Sinal dos tempos e do deixa-andar? Abraços
José Paulo

5:12 PM  
Blogger Nkhululeko said...

Caro José Paulo, infelizmente exemplos de desesperança não nos faltam. Questiono-me se não haverá outra saída para o país...acredito que sim, que outro Moçambique é possível. Um abraço.

1:00 AM  

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