Wednesday, November 30, 2005

Pica

Estar seis no hospital à espera de uma consulta é tempo mais que suficiente para testemunhar coisas sem fim. (In)esperada para quem pode custear uma «consulta especial» no Hospital Central de Maputo, neste caso, a demora(?) deveu-se a uma sucessão de acontecimentos. O médico foi-se embora sem atender ninguém, porque não tinha qualquer sala disponível. As enfermeiras puseram duas alternativas: marcar nova consulta lá para o fim de semana ou ser atendido por outro médico. Para quem se contorce com dores, a opção é óbvia. Fez-se a transferência, claro fincando para o fim da bicha (por cá o termo não tem outra conotação). Chegada a vez, o médico indignado remete o doente para outro especialista. Claro, não se esperava outra solução, pois para quem se queixa de problemas intestinais (com intervenções cirúrgicas à mistura), um pneumologista não será, certamente, o especialista recomendado. Lá se fez nova transferência, uma vez mais remetido para o último lugar da bicha. De modo que, entre marcações, desmarcações e transferências, acompanhei uma pequena história que podia ser a minha.
Não havia como convencer uma criança (cerca de 8 anos) a apanhar uma injecção. Compreende-se, é horrível! Avó, avô, mãe e tia (autêntica delegação familiar!) acompanhavam a miúda. Esforçaram-se em argumentos, belos discursos sobre as vantagens das «picas» e os perigos das doenças, ao que ela categoricamente respondia - «não, não quero pica!». Ensaiaram exercícios democráticos, como provavelmente recomendam os livros -«a solução está nas tuas mãos, tu é que decides…». Escolheu continuar doente. Outra criança, que entretanto chegou, empenhou-se, a pedido dos pais - «não dói nada, eu já apanhei». Não foi convincente. A miúda gritava e esperneava ante tentativas de aproximação por parte dos enfermeiros e serventes. Nos bancos já se discutia sobre as virtudes do sistema hospitalar de outros países - «esta gente aqui também não sabe como trabalhar. Em Portugal os hospitais para crianças têm desenhos e brinquedos, a criança não dá conta que está no hospital e tudo acontece naturalmente». Outros sentenciavam soluções drásticas - «as coisas mudam, no meu tempo era só agarrar e picar!». Não percebi a astúcia que estaria por trás da intervenção de um enfermeira que ia a passar conduzindo uma cadeira de rodas – «senta aqui!». Foi debalde. Era um autêntico alarido no corredor. Finalmente, sem mais recursos, a mãe avisou que ia ligar ao pai. Passou o telemóvel à filha. Depois de uma breve conversa com o pai, em sossego, serenamente, foi apanhar a «pica». Outras cogitações se levantaram entre os presentes – maior poder de persuasão dos homens? Autoritarismo do pai? Desgaste da miúda? Alguém ainda revisitou a crítica feminista sobre o patriarcado. Não sei o que o pai terá dito. Pus-me a pensar que se tivesse ouvido as mesmas palavras, muito provavelmente hoje as minhas idas ao hospital fossem menos angustiantes…

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